3º COLÓQUIO "SAUDADE PERPÉTUA"
Arte, Cultura e Património do Romantismo
Alpiarça, 7-9 de Outubro de 2022
Arte, Cultura e Património do Romantismo
Alpiarça, 7-9 de Outubro de 2022
RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES
As Salas de Bilhar e as Salas de Fumo no quotidiano doméstico em Lisboa e no seu distrito, no período de 1862 a 1910
António Cota Fevereiro
No final do século XVIII, os espaços habitacionais tornaram-se mais pequenos, confortáveis e com uma determinada função, consequentemente apoiada no desenvolvimento de novas tipologias de mobiliário, de luminária e de apetrechos necessários para esse fim. Na primeira metade do século XIX todas estas práticas deram origem a projetos de arquitetura cada vez mais funcionais e na criação de determinadas áreas. Para tal, foram decisivos os desenvolvimentos tecnológicos em torno da impressão gráfica e, por conseguinte, a circulação de publicações cada vez mais especializadas e dedicadas à arquitetura, aos manuais práticos e à moda. No mesmo período desenvolveram-se métodos de fabrico de artigos domésticos mais económicos e escoados através dos grandes armazéns, contudo tal efeito deveu-se ao uso vantajoso dos avanços atrás descritos, permitindo assim a sua proliferação e incutindo novos hábitos no público consumista emergente. Na segunda metade do século XIX estas tendências aprimoraram-se nas habitações domésticas europeias e americanas com espaços cada vez mais específicos, mas integrados numa sequência de outros de acordo com a sociabilidade então estabelecida. A decoração, o mobiliário, o vestuário, os serviços em diferentes tipos de material e a luminária subjacente com a temática acompanharam esta evolução, tendo aparecido assim a Sala de Bilhar e a Sala de Fumo. Estas divisões foram contempladas também em Portugal na segunda metade do século XIX e no início do XX pelos projetistas em variadas soluções, as quais foram provavelmente inspiradas em exemplares estrangeiros coevos. Neste estudo propomo-nos analisar como estes espaços foram integrados no quotidiano habitacional, de acordo com a sua espacialidade e a arquitetura, onde igualmente focaremos a decoração, o uso de vestuário apropriado e os serviços para fumo, entre outras particularidades. Para tal apoiar-nos-emos no cotejamento de fontes documentais, de periódicos e de obras literárias para entendermos como tais influências foram desenvolvidas em Lisboa.
O mobiliário de «capitonné» nos interiores românticos: um exemplo no Museu Nacional de Arte Antiga
Patrícia Milhanas Machado
Ancorado num profundo sentido poético, o romantismo espelha um conjunto de alterações na forma de conceber e viver os interiores, alicerçadas numa quase teatralização e dramatização do espaço. Entre as várias formas de composição, o mobiliário surge-nos como um dos veículos que participa nessa mesma narrativa. Como tal, a presente comunicação pretender abordar a relação do móvel de assento coletivo, enquanto agente que concorre para uma nova conceção de organização do espaço intimamente relacionada com novas formas comportamentais, bem como com uma progressiva procura de funcionalidade e conforto. A análise partirá, assim, de um exemplo pertencente ao acervo do Museu Nacional de Antiga, cuja incorporação data de 1982 (legado Barros e Sá). Composto por um sofá e duas poltronas individuais (inv. 1589-1591 Mov), numa clara alusão ao acto de conversação, este conjunto apresenta uma característica que irá marcar os interiores românticos: o recurso ao capitonné. Deste modo, é objetivo da comunicação enquadrar esta peça no período de divulgação marcado pelo gosto do acolchoamento, cuja fixação de tecido por meio de botões e juntas conheceu êxito e propagou-se a partir de 1840, criando novos desenhos e influindo na estética dos móveis. Procurar-se-á abordar esta peça numa dinâmica relacional com outros exemplos e outras novas tipologias (indiscret, o confident, borne, etc.) numa análise ampla assente no contexto global de produção e dos respetivos centros de fabrico que convivem com a premente e crescente alteração de organização do espaço, designadamente o espaço da sala. Com efeito, pretender-se-á analisar a especificidade de uma técnica de produção - o capitonné – e perceber a forma como a mesma participa na organicidade dos espaços e no próprio quotidiano romântico. Por outro lado, pelas suas características formais, a peça em estudo permitirá ainda perceber o período do romantismo como um momento irremediavelmente mergulhado no passado e num tempo distante que se materializa na linguagem decorativa adotada, de influência greco-romana. O revivalismo histórico, assente num vínculo a um passado (imaginário) e a uma perpetuidade de um sentimento nostálgico, será outro dos aspetos em estudo.
A eterna intimidade: a ornamentação de cabelo na miniatura e joalharia oitocentistas a partir da coleção do Museu Nacional de Arte Antiga
Inês Gaspar Silva
Depois da morte - a par das unhas - nada é mais perene no corpo humano que o cabelo, mantém-se imutável durante décadas, chegando mesmo, em alguns casos, a preservar-se por séculos. Ao celebrarem a vida e a morte, os objetos produzidos a partir desta matéria-prima, operam como símbolos e elos de amor (eterno) que, na sua ausência física - temporária ou não – habitam, assim, num tempo suspenso, ancorado na lembrança de alguém amado que a presença dos seus cabelos convoca. A tradição da ornamentação de cabelo humano (hairwork remonta aos séculos XVII e XVIII – embora conheça no século XIX maior esplendor – empregue em distintos objetos, durante o período romântico, está presente no verso de miniaturas e na joalharia, assim como, em alguns mementos decorativos (globe de marrié, árvores genealógicas e coroas de flores de cabelo). No caso particular das miniaturas, que per se são imagens de afeição, capazes de invocar e recordar entes próximos, a inclusão de cabelos do retratado no seu verso, salienta, ainda mais, a dimensão afetiva do retrato. Com o aumento da procura por estas peças, alguns miniaturistas começam também a trabalhar o cabelo, tornam-se hábeis em criar a malha ou a trança de cabelo do reverso do retrato (sobre o qual encontramos, amiúde, monogramas recortados em bronze ou ouro), ora em criar decorações mais elaboradas, ora em executar pinturas a partir de uma mistura de cabelo diluído com pigmento. Esta que começa por ser uma tendência entre as elites, transforma-se rapidamente numa indústria (na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos), e, em pouco tempo, pulula por toda a Europa, chegando a Portugal, onde está documentada nas fontes oitocentistas portuguesas. Tomando como ponto de partida um conjunto de obras com ornamentação de cabelo, pertencentes às coleções de miniatura e joalharia do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), propõe-se com esta comunicação fazer a identificação desses objetos, descodificando o seu significado à luz da sensibilidade e dos hábitos sociais da cultura romântica, e, estabelecendo relações com outros objetos que ajudem a compreender criticamente o contexto de produção e de consumo deste tipo de objetos em Portugal.
Bom gosto & Amor pelas artes: Quotidianos da Família Relvas, na sua Casa dos Patudos, nos finais do Século XIX, inícios do Século XX
Nuno Prates
José Relvas (1858 – 1929) nasceu na Golegã no dia 5 de março, teve uma educação clássica onde a música estava sempre presente. Em 5 de fevereiro de 1882 casa com Eugénia da Silva Mendes (1865-1951), filha dos Viscondes de Loureiro, de Viseu, e sua segunda prima, por via materna. O casal fica a viver na Quinta do Outeiro, na Golegã. Após a morte de D. Margarida (1838-1887), mãe de Relvas, este herda a Quinta dos Patudos, em Alpiarça e aqui fixa residência em 1889. O casal teve três filhos, nenhum dos quais sobreviveu aos progenitores. As primeiras vivências da família Relvas, em Alpiarça são marcadas por um quotidiano que está intimamente ligado à infância das crianças, são vários os registos fotográficos realizados pelo avô Carlos Relvas (1838-1894). A música fazia parte do quotidiano da Casa, Relvas era um apaixonado por esta arte, fundou em 1889, o Quinteto de Música de Câmara de Lisboa, tocou violino em público em diversos concertos, fez questão de dar à música um lugar de destaque no seu quotidiano e um lugar de honra nos serões da sua casa. O patrono da Casa dos Patudos cultivava relações próximas com artistas, o que lhe permitiu obter estudos, ensaios, efetivar primeiras escolhas artísticas, como o demonstram algumas obras adquiridas. Como colecionador, Relvas, demonstrou um gosto eclético; a sua pinacoteca centrou-se em duas escolas – a realista e a naturalista. Procurou o convívio com conservadores de museus, críticos, historiadores de arte, frequentava exposições e tinha vários amigos que o aconselhavam nas aquisições. A sua Casa dos Patudos foi o resultado da encomenda ao Arquiteto Raul Lino, num projeto que contemplasse espaços dignos para apreciar a coleção e, ao mesmo tempo, fosse residência familiar.
Homem do seu tempo, a sua condição também se traduz no prazer pela vida social das grandes capitais europeias da época, o gosto pelo requinte, pelos hotéis da moda, pelo apreço que dispensa à vida social, aos passeios públicos, aos grandes espetáculos de música erudita, aos teatros literários, à arte pública, ajudam assim a identificar uma personalidade que procura a construção do belo, o cidadão da República.
João Baptista Burnay e os naturalistas
Ramiro A. Gonçalves
A pequena coleção de obras de artistas naturalistas reunida por João Baptista Burnay (1844-1903) pouco impacto teve na História da Arte nacional, contudo a sua influência e apoio foram relevantes na consolidação dos valores naturalistas em Portugal. Thomaz de Mello Breyner, 4.º conde de Mafra, descreve Burnay como um «homem intelligentissimo, d’uma cultura vastíssima e d’um espirito brilhante». Engenheiro de formação, contribuiu para diversos projetos chaves na arquitetura e na engenharia em Lisboa, Angola e Moçambique. Nas colónias africanas desempenhou um papel chave nas políticas de afirmação e integração territorial. Também destacou-se como industrial na metalurgia nacional. No seu círculo de amigos de João Burnay encontramos escritores como Ramalho Ortigão (1836-1915) ou Eça de Queiroz (1845-1900) ou o pintor Silva Porto (1850-1893), de quem reuniu uma pequena mas importante coleção. Foi retratado duas vezes por Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) e ainda teve a efigie esculpida por José Simões de Almeida (Tio) (1844-1926). Na qualidade de genro de Pedro Eugénio Daupias (1818-1900), conde de Daupias foi responsável pela apresentação dos artistas naturalistas ao industrial e reconhecido colecionador. Burnay acompanhou os naturalistas em visitas às célebres galerias do sogro assim como aos inúmeros saraus ou festas que aí aconteciam.
Ao encontro de Veloso Salgado: O itinerário artístico do pintor, de Lisboa a Wissant (1888-1945)
Maria de Aires Silveira
Esta investigação desenvolveu-se a partir do trabalho de inventário do legado da neta, Conceição Veloso Salgado, que sem descendência, propôs a incorporação de todo o espólio do artista no MNAC. Alguns salões permaneciam imutáveis à passagem do tempo. O edifício, onde se encontrava a casa de Veloso Salgado, com obras do arquitecto Ventura Terra, amigo do artista, em inícios do século XX, organizava-se de modo a estabelecer espaços abertos e de comunicação entre os vários salões. Mobiliário Império, clássicos tremós, objectos decorativos variados, esculturas de Simões de Almeida e Teixeira Lopes, conjuntos de fotografias dos principais ateliers fotográficos dos séculos XIX e XX, e, os elementos da loja maçónica a que pertencia o artista, caracterizavam o seu gosto. As pinturas, de diversos autores, preenchiam as paredes. No salão principal impunha-se a pintura do retrato de família, de Veloso Salgado, pela sua dimensão, e um outro retrato, mais tardio, igualmente de grandes proporções, exibia a filha num elegante vestido verde, da década de 1920 e mantinha-se na sala de música, junto ao piano de cauda, a um antigo bandolim italiano e inúmeras pautas de música. O estudo para o Retrato do pintor Adrien Demont, de 1892, do pintor Veloso Salgado, distinguia-se no conjunto de pinturas desta casa, numa zona histórica de Lisboa, na Rua da Quintinha. A inscrição, visível nesta tela, referia: “étude pour le portrait du peintre” e fascinava pela sua modernidade, pintado em pequenas e nervosas pinceladas. Registava, num pequeno retrato, as cumplicidades existentes entre os artistas, onde uma pose de pintor-poeta se impunha. Adrien Demont era um pintor de paisagens que registava as suas impressões, especialmente em crepúsculos e nocturnos. No espólio, distinguia-se uma pintura, assinada por Adrien Demont, em tonalidades escurecidas por uma noite de luar, onde mal se visualizava uma pintura de marinha, monocromática, assim como uma pequena tela, de Virginie Demont-Breton, pontuava, com uma inscrição afectuosa a Veloso Salgado. Surpreendentemente, existiam cinco cartas destes amigos franceses, na casa de Veloso Salgado. Revelavam a existência de um caso de estudo, fundamental para a compreensão do percurso artístico de Veloso Salgado, desde 1896, data do regresso de Veloso Salgado a Portugal, até 1928, data da morte de Adrien Demont, e ainda outras mais tardias, de Virginie Demont-Breton. Recentemente, encontrou-se também importante correspondência de Veloso Salgado para Teixeira Lopes, grande amigo e modelo de um dos melhores retratos do pintor, assim como cartas de Jules Breton, o mestre destes artistas portugueses, da filha, Virginie Demont-Breton e de Adrien Demont, no Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia. Surgia um caso inesperado de amizades e trocas artísticas com os artistas da Escola de Wissant, como Stievenart e Planquette, crucial para o entendimento das relações entre artistas portugueses e franceses que importava revelar, tal como um fascínio inicial de Veloso Salgado pela Bretanha, colocou-o como o primeiro artista português a pintar esta zona, em Malestroit, a partir de 1888, provocando a curiosidade de outros artistas portugueses. Assim, delineava-se um projecto de investigação vasto, apresentado recentemente no Musée de Boulogne-sur-mer. O fascinante estudo para o Retrato de Adrien Demont introduziu cumplicidades artísticas e uma pesquisa profunda que culminou na descoberta, numa colecção particular francesa, de dois retratos excepcionais de Veloso Salgado, Retrato d’Adrien Demont e Retrato de Virginie Demont-Breton, de 1891 e 1894.
Colecionismo nos Açores e a «Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola» (1880-81)
Maria Manuel Velasquez Ribeiro
Apesar do interesse académico pelo estudo do colecionismo, a geografia e cronologia do colecionismo privado açoriano são mal conhecidas, muito embora tenham sido algumas dessas coleções, e a ação dos seus colecionadores, o embrião da constituição de museus e coleções públicas. As antigas capitais de distrito (Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Horta) identificam-se como o berço oitocentista das experiências colecionísticas mais recuadas e ecléticas. Um volume significativo dos bens colecionados é duplamente representativo, quer do cosmopolitismo e das estratégias de circulação pela Europa das elites insulares, quer das dinâmicas de distribuição e reequipamento doméstico interpretado pela aristocracia decadente de meados/final de Oitocentos. Mercado limitado pela fronteira geográfica das ilhas, as interações entre colecionadores estabelecem-se com base na horizontalidade dos grupos sociais dentro dos quais o capital social e simbólico da coleção proporciona trocas, oportunidades de apreciação e convívio, e a partilha de conhecimentos. A participação açoriana na grande exposição assinalou vários marcos (reconhecimento local, nacional e internacional de bens, musealização de espécies), mas também suscita perguntas com cujas respostas se procura conhecer os propósitos e as estratégias individuais, e a(s) forma(s) como uma sociedade periférica protegeu/descurou/esqueceu/lembrou e conviveu domesticamente com a cultura material que recolheu e através da qual ensaiou a sua auto-representação.
Reescrever a História nas tábuas do palco: personagens da História de Portugal na Ópera Romântica
Carlos Caetano
Com o Romantismo a História perpassa e impregna todas as formas da cultura e das artes – e a ópera em particular.O palco de ópera pedia à História um passado (sobretudo medieval), cheio de episódios célebres, grandes personagens, heróis e grupos colectivos mais ou menos libertários, mas pedia também a cor local, o pitoresco, o exotismo, o diferente, o excessivo e o marginal e mesmo as tradições populares foram convocadas neste processo. Em suma, o passado, “operatizado”, proporcionava uma das bases em que se apoiava e em que se modelava a consciência identitária do público romântico e a inerente chama do nacionalismo, mais ou menos latente ou explícito em muitos libretos de ópera de cunho histórico. Na comunicação cuja proposta agora se apresenta incidiremos apenas em óperas que têm como personagens principais figuras da História de Portugal, a saber: a Inês de Castro de Giuseppe Persianni (T. São Carlos de Nápoles, 1835), o Dom Sebastião, Rei de Portugal (Ópera de Paris, 1843), de Gaetano Donizetti, A Africana, que tem Vasco da Gama como protagonista (L’Africaine; Ópera de Paris, 1865), de Giacomo Meyerbeer e, finalmente, o Dom Carlos (Ópera de Paris, 1867) de Verdi, baseada no drama de Schiller, cujo protagonista é o Infante D. Carlos de Espanha, ópera dominada pela figura de Filipe II, seu pai - o Rei D. Filipe I de Portugal. Na comunicação abordar-se-ão, naturalmente de uma forma muito sintética, a escolha dos temas, as fontes e a natureza das liberdades das adaptações levadas a cabo pelos libretistas. Com efeito, estes modelaram e adequaram os temas, as figuras e os factos históricos escolhidos aos convencionalismos da ópera, tal como codificados e consolidados nas décadas centrais do século XIX, que deram origem ao sub-género “Grand Opéra” que teve como epicentro a Ópera de Paris. Na busca de situações dramatúrgicas de grande efeito, as liberdades dos libretistas passam pela adaptação e distorção, por vezes grosseira, de personagens e de factos do passado, pelo anacronismo, pela idealização, pela inverosimilhança e até pela obsessão ideológica de cunho libertário e mesmo anti-clerical que perpassa por alguns libretos. As liberdades e as convenções do género permitiram, porém, a criação de óperas e de personagens operáticas que, se muito afastadas da verdade histórica, têm uma verdade e uma autenticidade próprias: o Dom Carlos, a última ópera “histórica” de Verdi, será uma das culminâncias da arte do século XIX e o papel de Filipe II será a personagem histórica mais majestosa e mais profunda da História da Ópera.
Uma princesa do Renascimento no tempo do Rei D. Luís: Beatriz de Portugal (1504-1538) – no Teatro, na Ópera, na Pintura Oitocentista
Isabel Monteiro
No ano em que Garrett escreve Um Auto de Gil Vicente [1838] – peça paradigmática do Romantismo português – nasce em Lisboa o infante D. Luís de Bragança que, aos 23 anos de idade, subirá inesperadamente ao trono de Portugal por morte do seu irmão primogénito, D. Pedro V. Nesse mesmo ano parte para o Brasil o violinista Francisco de Sá Noronha, onde prossegue uma carreira musical e onde compõe a ópera Beatriz de Portugal, baseada precisamente no drama de Garrett. Para tal o texto original é adaptado a libreto, traduzido depois para italiano e, aquando do regresso do compositor a Portugal com a obra terminada, esta acabará por ser dedicada ao novo rei, D. Luís I. A figura central tanto no drama como na ópera é a infanta D. Beatriz (1504-1538), filha de D. Manuel I, que em 1521 se sujeitara a um polémico casamento com o Duque de Sabóia, sendo previamente expectável que desposasse um príncipe ou um rei. A aura de abnegação desta princesa – prescindindo de hipotéticas ambições pessoais em favor dos interesses da coroa – exaltava os
patriotas oitocentistas, que aí viam os extremos sentimentais e emocionais tão caros aos artistas do Romantismo. O próprio monarca, desposando por essa altura uma princesa saboiana – D. Maria Pia – julgou oportuno recuperar a imagem simbólica da referida D. Beatriz para o Palácio da Ajuda, encomendando ao pintor italiano Enrico Gamba (1831-1883) uma tela de grandes dimensões com a representação do desembarque da infanta quinhentista no seu ducado italiano, possivelmente num paralelismo com a chegada da nova rainha a Lisboa, após uma viagem marítima em sentido inverso. Estas três obras encontram-se pois ligadas pela figura singular desta princesa do Renascimento, alvo de um inusitado protagonismo póstumo, revelador do gosto romântico pelos temas históricos, em recriações – por vezes híbridas, por vezes anacrónicas – de um passado idealizado. O conjunto será aqui abordado, procurando estabelecer um diálogo entre as duas épocas em questão.
Um mundo em imagens: O fenómeno da circulação massiva de bilhetes-postais ilustrados durante os primeiros anos do século XX (1894-1918) e o seu papel na difusão de uma cultura visual popular transnacional
Daniela Simões
Os bilhetes-postais do início do século XX assumem-se como fontes privilegiadas para o estudo do quotidiano das populações, das relações sociais e comunicacionais deste período, atestando uma cultura de consumo, circulação de objetos, pessoas e informação a um ritmo até então sem precedentes, representativa da Modernidade baudelairiana. Primeiro fenómeno de cultura de massas à escala mundial, o bilhete-postal permitia o envio de pequenas mensagens, apreço diminuto, factores que rapidamente assegurariam a sua omnipresença no quotidiano de todas as classes económicas. Contudo, o impulso derradeiro para a eclosão desta “febre” seria a introdução da imagem no suporte postal, fruto do aperfeiçoamento e criação de novas técnicas de composição, impressão e reprodução na indústria tipográfica. Através da ilustração e da fotografia, as possibilidades imagéticas e temáticas do bilhete-postal multiplicar-se-iam, gerando uma vaga mundial de colecionismo, constituindo a troca de postais e a construção de álbuns um dos passatempos preferidos das famílias do período. A juntar à primitiva função de suporte de comunicação escrita e ao estatuto de objeto colecionável, muitos postais congregariam ainda uma componente artística, albergando ilustrações de artistas conceituados, ou reproduções de obras de arte famosas, constituindo uma das principais formas de contacto das populações com uma esfera artística, ou seja, veículos para uma experiência sensorial e estética alargadas. A circulação massiva de postais ilustrados e as suas múltiplas funções e dimensões semânticas manifestar-se-iam invariavelmente no quotidiano da sociedade portuguesa coeva. Assim, a presente comunicação pretende debruçar-se sobre o papel e impacto dos bilhetes-postais ilustrados na criação e disseminação de uma cultura visual transnacional, na entrada para 1900, em Portugal, problematizando: 1) o estatuto do bilhete-postal ilustrado enquanto “enciclopédia visual” de Portugal e do mundo; 2) a sua transformação em item colecionável e a sua relação com os novos hábitos de consumo e lazer das sociedades burguesas industriais; 3) a sua elevação a objeto artístico com a produção de séries limitadas e numeradas por artistas gráficos nacionais, num diálogo entre as esferas da high e low art; 4) a criação de novos códigos de linguagem iconográficos caros ao suporte postal; 5) a existência/ausência de especificidades deste fenómeno em território nacional.
O fotógrafo espectador: Bobone e a companhia teatral Rosas e Brazão
Paulo Ribeiro Baptista
O estúdio Bobone foi porventura a mais importante casa fotográfica lisboeta do virar do século XIX para o XX. Augusto Bobone, fotógrafo que tinha uma sólida formação artística, tomou conta do conceituado atelier Fillon e deu continuidade à sua actividade de retrato e, em particular, de retrato teatral. Para além disso desenvolveu uma diversificada actividade fotográfica participando, por exemplo, em Le Portugal Au Point de Vue Agricole, preparada para a Exposição Universal de Paris de 1900. Também colaborou com o Gabinete de Radiologia do Hospital Real de S. José. O atelier Bobone foi ainda um reputado salão de exposições, dos mais importantes de Lisboa, pelo qual passaram muitos destacados artistas nacionais. Com uma longa, múltipla e bem-sucedida actividade no retrato, o atelier Bobone ficou marcado pela estreita relação que manteve com a Casa Real Portuguesa. Durante as cerca de duas décadas durante as quais esteve à frente do estabelecimento fotográfico, Bobone não só foi fotografando regularmente todos os membros da Família Real, os reis e príncipes, como também retratou grande parte dos membros da nobreza mais chegada à Casa Real e muitos dos ministros dos governos monárquicos. Mas um dos aspectos mais notórios e importantes da actividade do estúdio Bobone foi o acompanhamento da actividade teatral, sobretudo da do Teatro Nacional e em particular da Companhia Rosas e Brazão, a mais importante companhia teatral de final do século Dezanove e início do Vinte. Na verdade, através da actividade da Rosas e Brazão (e das fotografias de Bobone) temos o privilégio de ter os “ecos visuais” possíveis desse período de ouro do teatro português na transição do teatro romântico para o naturalista. As coleções de imagens de actores foram editadas em postais, uma actividade editorial que estava em franca expansão em Portugal na época. Para além das coleções de imagens e de postais, as fotografias de Bobone que começaram a ser publicadas nas principais publicações ilustradas portuguesas da última década de Novecentos, principalmente em O Occidente, gravuras que permitem acompanhar alguma da actividade fotográfica mais significativa do seu estúdio fotográfico que também se alargou a outras vertentes, como a reportagem mundana.
Knopfli e Wunderli, fotógrafos ambulantes em Portugal no século XIX
Nuno Borges de Araújo
No panorama da prática fotográfica oitocentista em Portugal há um caso particularmente interessante, pela sua singularidade. Trata-se da actividade desenvolvida por Eduard Knopfli e Jacques Wunderli, fotógrafos suíços conterrâneos e familiares, que chegaram a Portugal vindos de Paris no início dos anos sessenta, e aqui permaneceram até ao final da sua vida. Trata-se de um percurso partilhado por ambos em dois momentos específicos, com um estúdio fotográfico comum - na sua passagem pelos Açores em 1861, e por Coimbra no ano de 1864 - mas, sobretudo, de dois percursos individuais, em áreas diferentes do país, tendo Wunderli exercido a prática fotográfica no centro e no norte do país, e Knopfli sobretudo no centro e no sul. Assim, a sua actividade pode ser descrita como dominantemente ambulatória, embora nem sempre o tenha sido. Nalguns momentos demoraram pouco tempo nas localidades onde fotografaram, noutros permaneceram por um tempo considerável, e nos últimos anos de actividade acabaram mesmo por estabelecer residência fixa, Wunderli no norte e Knopfli no sul do país. Assim, não os podemos descrever como fotógrafos ambulantes típicos, em constante movimento e trabalhando em condições precárias. Na verdade as características do trabalho de ambos não difere do realizado por fotógrafos oitocentistas com estúdio permanente, embora as imagens que deles conhecemos sejam algo irregulares na sua qualidade técnica e estética. Tal como a maioria dos outros fotógrafos, o seu trabalho dominante foi retratar, mas também tiraram vistas das localidades por onde passaram. Propomos-nos dar conhecimento dos seus percursos na medida das informações que pudemos recolher, e mostrar algumas das suas imagens.
«Um excellente technico que seja ao mesmo tempo artista». O contributo de Joseph Leipold (1833-1916) nas artes gráficas e processos fotomecânicos em Portugal
André das Neves Afonso
No dia seguinte ao Natal do ano de 1916 morria, em Lisboa, Joseph Leipold (1833-1916). Findava, assim, um longo e prolífico percurso de mais de cinco décadas ao serviço do desenvolvimento das artes gráficas e processos fotomecânicos em Portugal. Natural de Viena de Áustria, Leipold desenvolveu, inicialmente, atividade nas artes da gravura, galvanoplastia e fotografia na Imprensa Imperial de Viena e em alguns estabelecimentos londrinos. Viria a ser contratado pela Imprensa Nacional e chegaria a Portugal em 1863 para assumir a função de gravador puncionista e diretor da respetiva oficina, ficando igualmente responsável pela modernização de processos, de maquinaria e de ensino. Para além da ligação que também estabeleceu com diversos periódicos, no campo da gravura, ou da sua pouco conhecida atividade na produção medalhística, Leipold empreendeu ainda experiências e trabalhos relacionados com a fotografia e, sobretudo, com alguns processos fotomecânicos, nomeadamente a heliogravura, a foto-galvanografia e a fototipia. Nesta área cooperou com diversos fotógrafos – nomeadamente com Henrique Nunes e Carlos Relvas – que, entre outras colaborações, lhe disponibilizaram clichés e equipamento para os seus ensaios. Num projeto inédito que não se terá concretizado, a Academia Real de Belas-Artes de Lisboa, por intermédio de Francisco de Sousa Holstein, propôs-se contratar Joseph Leipold, em 1875, no sentido de colaborar na instalação e direção de uma oficina de galvanoplastia e heliografia. Procurava-se, deste modo, executar reproduções das coleções académicas para distribuição por escolas de desenho regionais ou para vendas e permutas com museus, emulando algumas práticas museológicas internacionais. De 1876 até ao final da sua vida, e não obstante algumas atividades paralelas, Leipold dirigiu ainda a oficina de estamparia do Banco de Portugal, atuando ativamente na sua modernização. No contexto da investigação em curso, cujos resultados propomos discutir no presente Colóquio, pretendemos contribuir para a valorização desta multifacetada personalidade, sistematizando a informação fragmentada existente em estudos de diversas áreas e revelando dados inéditos sobre o seu percurso profissional e biográfico. Num artigo saído do seu próprio punho, Leipold referia que há funções que “requerem um excellente technico que seja ao mesmo tempo artista” – e ele era, seguramente, um caso paradigmático disso mesmo.
O Laboratório Químico da Casa Pia de Lisboa: uma viagem científica no Período Romântico
I. Marília Peres, Sérgio P. J. Rodrigues
Qual a relação entre um lar para órfãos e o movimento romântico em Portugal? Que influência tiveram o Marquês de Pombal e o Pina Manique no crescimento da Química em Portugal? Quais os atores que pisaram estes novos espaços do romantismo – os Laboratórios de Química? O Romantismo, como movimento cultural, é considerado de um modo geral como contrário à ideia de ciência, ou a sua visão idealista parece ser oposta à chamada objetividade científica. Não terá sido sempre assim, pois podemos falar de uma ciência romântica. Nesta, o cientista procura desvendar os mistérios da natureza, com os instrumentos científicos como seus aliados. A ciência volta-se para o povo, deixa de estar confinada a uma elite. Nesta comunicação pretende-se traçar um percurso que passa pela criação da Casa Pia de Lisboa em 1780; a criação dos vários colégios, nomeadamente o Colégio de S. Lucas; o funcionamento da Botica da Casa Pia; o primeiro livro de Química escrito em português por Henriques de Paiva, bem como o livro do Visconde de Vilarinho de S. Romão e o impacto destes na criação de outros laboratórios de Química em Portugal, nomeadamente o Laboratório da Casa da Moeda e o Laboratório Químico da Universidade de Coimbra.
Traços de Viagem. Os romances marítimos de Francisco Maria Bordalo
Maria João Castro
Como se sabe, o romantismo imprimiu um novo ímpeto à viagem, alterando o centro de interesse da Europa (lugar de eleição desde o Grand Tour do século XVII e XVIII) para o Oriente, verificando-se uma deslocação do centro de interesse do viajante europeu para terras do Levante, facto que o converteu num cenário de eleição, exótico e longínquo. A atmosfera sedutora dada por inúmeros pintores e escritores europeus cujos impérios se haviam expandido até ao Extremo Oriente ao longo do século XVIII e inícios de XIX reconfigurou toda uma imagética que foi de encontro aos ideais românticos em vigor na Europa imperial de então. Contrariamente ao viajante diletante do Grand Tour, o viajante romântico procurou viajar com o intuito de obter uma experiência interior decisiva, consubstanciada na procura do outro, do desconhecido e do diferente. Era toda uma nova sensibilidade adquirida, um novo despertar idealizado através da pintura e da literatura, e da moda do Orientalismo, que revelava paisagens e costumes inusitados, que atraiam e fascinavam. Certamente que o progresso trazido pela Revolução Industrial permitiu o desenvolvimento dos transportes e a estruturação de uma rede de serviços que imprimiram à deslocação uma maior comodidade e celeridade ainda que viajar para o Oriente permanecesse um luxo acessível apenas a uma pequena elite. Dos inúmeros viajantes da Velha Europa, poucos foram os portugueses que efetivaram a demanda de partir e registar os territórios imperiais pertencentes à coroa portuguesa pelo que as narrativas de viagem de Francisco Maria Bordalo constituem um documento raro, resgatado a um pretérito quase esquecido e cuja narrativa oferece uma visão invulgar sobre parte das possessões ultramarinas portuguesas da África à América e à Ásia. Infletindo numa das suas obras de referência - Um passeio de sete mil leguas: Cartas a um amigo - propõe-se cartografar o olhar singular e romântico de um português que ousou ir mais longe e durante um período temporal mais alargado, mergulhando nas suas narrativas de viagem através das quais se apreende parte da atmosfera dos territórios do império português à época, particularidade raramente experimentada pelos viajantes nacionais de Oitocentos.
A viagem de Dora Wordsworth pelo Portugal Romântico em 1845
Paulo Duarte de Almeida
Dora Wordsworth (1804-1847), filha do famoso poeta inglês William Wordsworth,
realizou entre 1845 e 1846, na companhia de seu marido Edward Quillinan, uma viagem, durante a qual visitou uma grande parte do nosso país e do sul de Espanha. Durante a viagem, feita por motivos de saúde, já que sofria de tuberculose (que a viria a vitimar em 1847), Dora Wordsworth escreveu um diário intitulado Journal of a few months, residence in Portugal and glimpses of the south of Spain, o qual foi publicado em Londres pela primeira vez logo em 1847, tendo sido recentemente traduzido e publicado entre nós. Esse diário constitui um testemunho notável sobre o nosso país não só porque resulta do olhar de um viajante estrangeiro, mas também porque, sendo da autoria de uma mulher culta, contém inúmeras referências sobre a flora, paisagens, arquitetura, história, literatura, costumes, entre muitos outros temas, que nos ajudam a conhecer o Portugal de meados de Oitocentos. Nesta comunicação, propomo-nos fazer uma leitura dessa obra pondo em destaque as suas características românticas (tão caras ao grupo organizador deste colóquio) e relacioná-lo com um conjunto de desenhos - paisagens dos locais visitados - feitos pela própria autora e desconhecidos do grande público.
O "Livro íntimo" de Julián Martinez (1833-1907), ou as agruras do ofício de pintor retratista
Francisco Queiroz, Cristina Moscatel
Julián Martinez (1833-1907) foi um pintor galego cuja carreira se desenvolveu toda em Portugal, tendo residido e falecido em Viana do Castelo. Escreveu umas memórias, as quais receberam o título de "Livro íntimo" quando foram publicadas, durante o final de 1880 e os primeiros meses de 1881, no periódico "O Valenciano". O seu redactor decidiu publicá-las integralmente, em folhetim, por considerar serem "a descripção franca e sincera dos primeiros passos que um homem amante do trabalho deu na vida artística, buscando a realisação do seu ideal". Este "Livro íntimo" é, pois, um documento muito importante para a História da Pintura em Portugal no período romântico. Não só testemunha o quão podia ser difícil singrar como pintor, sobretudo nos primeiros tempos de existência de um atelier, mas também revela aspectos interessantes sobre as expectativas dos jovens que, na época, aspiravam a frequentar uma academia de Belas Artes e sobre a nem sempre fácil relação entre pintor e clientes. Nesta comunicação, além de uma transcrição crítica do seu "Livro íntimo", traçaremos o esboço biográfico de Julián Martinez e apresentaremos várias das suas obras.
A Casa Costa Lobo, pintura decorativa na transição para o século XX em Coimbra
Miguel Montez Leal
Na Alta de Coimbra, na Rua dos Coutinhos, n.º 22, localiza-se uma casa que encerra em si uma história extraordinária. Parte do edifício remonta ao século XVI e foi muito transformado nos finais do século XIX, unindo-se vários imóveis que tinham pertencido antes à família Coutinho. O conjunto habitacional encontra-se numa zona nobre da cidade de Coimbra e assenta sobre o criptopórtico romano, no alto de uma colina que guarda dois mil anos de História. Na segunda metade do século XIX a casa foi mandada restaurar pelo rico comerciante José de Sousa Gonzaga, que a ofereceu como dote de casamento à sua filha única, Estrela, aquando do seu casamento com Francisco da Costa Lobo. Em 1901 este contrata o pintor José Maria Pereira Cão (1841-1921) para pintar e decorar as principais dependências daquela vasta residência. Este edifício de uma grande riqueza interior, tanto pela sua pintura decorativa como pelos seus estuques e mobiliário de época, encontra-se praticamente congelado no tempo. A casa é habitada há cinco gerações pela mesma família, que mantém todo este património e que conserva um arquivo familiar do maior interesse para o historiador. As cartas guardadas pela família fazem-nos acompanhar o processo da encomenda da campanha decorativa e ficar até a conhecer o montante que foi pago ao prolífico Pereira Cão, artista muito requisitado pela elite da época e com uma vastíssima obra. A feliz conjugação de podermos estudar uma casa que mantém a sua decoração e espólio integral, que é habitada pela mesma família e que conserva este espólio e arquivo não é muito habitual em Portugal, onde diversas vicissitudes, mudanças de regime, questões, dilemas de partilhas, interesses financeiros ou abordagens especulativas, nos impedem que seja pouco comum confrontar-nos com uma jóia deste valor. A qualidade das pinturas executadas para as dependências desta casa sublinham o profissionalismo deste pintor de nomeada e ficam-nos como uma prova mais do seu inegável mérito artístico, quando temos vindo a constatar que cada vez mais é difícil de encontrarmos intactos estes edifícios.
À procura de José Maria pela cidade do Porto (1856-1861): novos dados e novas perspectivas biográficas
Flávio R. da Fonseca Silva
Durante o século de Oitocentos, a Cidade Invicta viu nascer, presenciou e vivenciou alguns dos mais importantes escritores portugueses: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Júlio Dinis, António Nobre, e, José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) não foi a exceção. O seu primeiro contacto com a cidade portuense terá sido quando foi estudar para o Colégio da Lapa, entre 1856 e 1861, onde completou, durante cinco anos de categórica formação, a instrução primária e recebeu a formação escolar exigida para ser admitido na Universidade de Coimbra. O contexto do seu nascimento, que não fora planeado, tendo ocorrido antes de os seus progenitores se casarem, assim como alguns episódios decorridos na sua infância e juventude, influenciaram veemente a perspetiva dos biógrafos e estudiosos que se debruçaram sobre a vida e obra desta personalidade. Para uma larga maioria, Eça de Queiroz teve uma relação fria e distante com os seus pais (para alguns, teria sido mesmo rejeitado), condição que, referem, provocou marcas bem visíveis nos seus comportamentos e, consequentemente e sob a batuta da sua pena, profundos resquícios nas inúmeras personagens criadas por si para os seus romances. Um dos vários episódios que os biógrafos recorrem para fundamentar esta teoria é a passagem do jovem José Maria pela cidade do Porto. Atestam que, enquanto estudante no Colégio da Lapa, ministrado pelo pai do Ramalho Ortigão, o seu lar, apesar de os seus progenitores viverem na mesma cidade, com os restantes filhos, foi a residência dos seus tios maternos, os Tavares de Albuquerque, na rua de Cedofeita, uma das artérias de vivência burguesa da urbe portuense. O propósito inicial deste trabalho de investigação foi o de desvendar a localização da residência dos Tavares de Albuquerque. Todavia, perante as informações contraditórias que foram encontradas, o foco deste estudo passou a ser o esclarecimento de qual foi, afinal, a residência e o lar do jovem futuro escritor enquanto estudante na cidade portuense. À luz de novos dados biográficos, este trabalho apresenta-se como fulcral não só para compreender este período concreto da vida José Maria Eça de Queiroz, mas também para esclarecer verdades infundadas e teorias fictícias que há tanto tempo assombram uma das personalidades mais importantes da Literatura Portuguesa.